Contornando a timidez sem limitar as opções de personagens dos jogadores

Não precisamos procurar muito para encontrarmos debates sobre resolução de conflitos sociais em jogos de RPG. Muitos preferem o uso de regras específicas e outros o improviso narrativo. Eu entendo que isso é uma questão de gosto, mas em alguns debates vejo sendo levantada a questão da timidez e é sobre isso que eu quero falar.

Eu concordo que ninguém precisa ser super articulado e eloquente para interpretar um personagem que o seja, afinal ninguém cobra manejo com espada para se interpretar um espadachim. Mesmo assim, eu sou do time que prefere resolver as coisas no desenrolo, “desafiando o jogador e não sua ficha de personagem”… e por que isso?

Porque eu acredito que o problema não está na forma como resolvemos os conflitos sociais, mas sim na forma como encaramos a interpretação de personagens em si. Talvez uma reflexão sobre o papel do role play possa ajudar nesta questão. Vamos nessa!?

O papel da interpretação

Lembre-se disso: você joga RPG para interpretar um personagem, mergulhar numa vida de aventuras, em um mundo imaginário que é descoberto e construído por você e seus amigos.

Apesar de todo este aspecto lúdico e criativo, o RPG ainda é um jogo e possui um sistema de regras. Porém o RPG é um jogo de interpretação em primeiro lugar e isso faz toda a diferença. Não importa o volume e complexidade das regras, pois mesmo no jogo mais parrudo a interpretação deve ter papel essencial. A interpretação traz a tona duas coisas que tornam o RPG único: a possibilidade de se fazer o que quiser e como quiser.

Suas intenções são definidas por você e suas possibilidades de abordagens são ilimitadas (Anote estas palavras em negrito, pois são chave neste post).

A intenção define qual é o interesse de seu personagem em um dado momento e você pode ter as mais variadas intenções de boa. Já a abordagem define como seu personagem agirá para consumar suas intenções. Na real, sua interpretação pode ser a mais rebuscada do mundo, mas se não deixar estes pontos claros, não serviu de muita coisa. É melhor dizer “Eu ataco!” do que ficar falando por duas horas e depois ouvir  “tá, mas o que você vai fazer no seu turno?”

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A imaginação e a interpretação dão vida ao RPG

Interpretar não é atuar

Eu sei que tem uma galera que gosta de agir como ator em jogos de rpg. Ok! Tudo bem! Vá fundo nessa vibe, mas em minha opinião a interpretação no RPG fala mais sobre tornar a história interessante e envolvente do que gerar monólogos dignos de um oscar (tá eu sei que normalmente são momentos constrangedores de vergonha alheia, mas você me entendeu né!?).

Mesmo a interpretação de personagens tendo papel tão importante no RPG, o RPG em si não é uma peça de teatro.

O meu ponto aqui é a dosagem e objetividade. Tem gente que reclama dos tímidos e mais travados, mas por outro lado deixam o jogo chato sem acrescentar nada. Creio que se encontrarmos um meio termo, as coisas serão melhores e é por isso que eu digo que nossa ideia de interpretação pode ser revista.

Nosso jogo é de narrativa e não de artes cênicas. Eu admiro quem consegue jogar fazendo vozes e trejeitos, mas eu não preciso fazer cara de triste ou voz de zangado, eu preciso deixar claro que meu personagem esta triste ou zangado, pois é isso que importa.

Pode parecer besteira, mas isso já facilita em muuuuuuito a vida dos tímidos e menos articulados. Ninguém precisa ser ator ou eloquente para jogar RPG. Basta saber se expressar de forma simples e direta!

No RPG contamos com pouco tempo de atenção dos demais e não tem como “reler” o que falamos, por isso precisamos fazer bom uso das palavras.

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Jogadores de RPG não precisam ser atores ou dubladores performáticos… graças a Deus!

A interpretação que agrega

Fale pouco mais seja assertivo! Vá direto ao ponto! Quanto mais você quiser falar, maior será a chance de gaguejar, perder o fio da meada e a atenção dos demais. Por isso, poupe suas palavras e invista em objetividade. Mesmo que seu personagem seja um falastrão, não enrole o jogo….faça-o avançar!

Aqui vai um segredo de mestre: Eu não me importo tanto com a eloquência do discurso dos meus jogadores, eu me atento aos ganchos e pistas que eles deixam para mim. Por isso, eu filtro da abordagem todo aquele lance de “Oh! vossa excelência! Magnânimo e lindo npc” e me agarro ao que reflete as intenções reais dos jogadores. Então eu abstraio tudo e fico com coisas como “quero obter uma dica” ou “quero evitar briga” ou “preciso enganar todo mundo” etc.

Se você está acompanhando meu raciocínio já percebeu que, para mim, mais importante do que falar rebuscado é deixar claro a sua intenção e a sua abordagem na cena, pois só com isso o mestre já estará apto a julgar e continuar com o jogo. Então tenha isso em  mente: menos é mais! Fale pouco se for mais confortável para ti, mas fale de forma objetiva.

Eu só preciso entender as intenções dos jogadores e julgar sua abordagem para determinar para onde a aventura caminhará.

A maravilhosa 3ª pessoa do singular

Já vimos que a interpretação é parte fundamental do RPG, mas que não o torna em uma peça de teatro. Vimos também que a sua interpretação tem que agregar valor ao jogo, deixando suas intenções claras, assim como a abordagem que guiará as ações de seu personagem. Agora vamos falar sobre uma das muitas formas como uma pessoa tímida poderia interpretar um personagem que não seja tímido… é a forma que usei por muito tempo.

Quando comecei a jogar RPG eu era meio travado e me sentia um pouco constrangido algumas vezes. Até que descobri que mudar a pessoal verbal da minha interpretação torna tudo mais fácil. Interessante como o uso do discurso em terceira pessoa pode facilitar muito as coisas!

Eu não sou daqueles mestres que cobram que você fale em primeira pessoa, ou faça a voz do seu personagem nem nada disso. Acho ruim essa cobrança, mas se eu puder recomendar algo a você, seria a variação na pessoal verbal.

Eu acho que todo mundo deveria tentar interpretar em terceira pessoa ao menos uma vez. É sério! Foi uma experiência ótima que tive, principalmente para descrever ações, sentimentos e pensamentos dos meus personagens. Eu mesmo notei como a narrativa ficava mais construtiva e facilitava a vida do mestre…além da vida dos tímidos!

Mas como é isso? Basicamente você fala como se fosse um observador alheio ao que esta acontecendo. Ao invés de falar como se você fosse o personagem, você vai descrever (como um narrador) a forma como seu personagem falou, pensou e o que queria. Seria mais ou menos assim ó…..

“Que situação…aff…. bom, como a diplomacia não deu certo no julgamento, Tyrion invoca a tradição do duelo de honra e apela para a ganancia da platéia. Falando do ouro de sua família e de como os Lannisters sempre pagam suas dívidas, talvez consiga ajuda. Tyrion está bem sério e muito tenso, ao contrário do habitual jeitão debochado”

ou talvez assim:

“Os inimigos são mais fortes e eu preciso fazer alguma coisa… bem, vamos la: meu personagem, William Wallace irá fazer um discurso às tropas abaladas. Sabendo que o povo quer debandar e os nobres não o apoiam, ele vai apelar para o patriotismo e tentar inspirar a coragem alegando que vale mais morrer livre do que viver como escravo.

ou ainda pode ser assim também:

 

Raven está confusa…Acho que seria uma boa hora para mostrar outro caminho para ela. Então, o Magneto irá deixar clara a sua indignação com a tal “cura mutante”. Com um olhar reprovador, mas esperançoso, ele dirá que ela é mais bonita azul e que sua natureza mutante deveria lhe trazer orgulho. Magneto espera que ela se aceite como mutante e entenda que ele estará lá para apoiá-la quando precisar.

E ai!? Pegou a manha da parada? Nestas narrativas o jogador tímido conseguiu deixar claras as suas intenções de evitar a condenação de Tyrion, motivar as tropas escocesas e recrutar Mistica.  Ele fez isso através de uma abordagem persuasiva baseada na riqueza da família, no patriotismo e no orgulho mutante. Tudo isso sem deixar dúvidas sobre o que se passa na cabeça e no emocional dos personagens. Veja bem, tudo isso sem gesticular, postar a voz ou falar em primeira pessoa tendo que encarar o mestre e os demais jogadores nos olhos. É ou não é mais fácil?

Numa primeira leitura você pode ter achado meio forçado e que as pessoas tímidas teriam problemas para dizer estas coisas também, mas o meu ponto é que você tem uma alternativa além de apenas rolar um dado de lábia, por exemplo. Com o tempo você vai pegando a prática e as coisas vão fluindo. Esses exemplos foram apenas para mostrar como as coisas podem ser. O mestre sagaz vai entender suas limitações e vai levar de boa…eu levaria.

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Quem foi que disse que não dá pra jogar de Loki ?

Mas isso ai não é exclusividade OSR

Talvez você tenha notado semelhanças entre as coisas que disse até aqui e o seu jogo focado em “desafiar a ficha de personagem e não o jogador”. Pois é! O mais legal deste post é que tudo que eu disse cabe em qualquer jogo de RPG. Você poderia usar os 3 conceitos que citei aqui, (intenção, abordagem e pessoal verbal) e depois rolar os dados do seu atributo ou pericia social. Tudo vai depender do seu narrador captar suas mensagens e focar no andamento do jogo.

 É por isso que eu acho que o problema não esta na forma como resolvemos os conflitos sociais, mas na forma como conduzimos o role play. Eu acho que qualquer resolução funciona com os tímidos se tivermos um role play mais objetivo e assertivo.

Mãos à obra

Vou terminar por aqui, mas espero que você tenha absorvido alguma coisa de produtiva no meio de todo o meu blábláblá. No final, o que eu espero que tenha ficado claro é que gente tímida pode jogar um jogo OSR sem medo de ser feliz.

Se você conseguir falar pouco, em terceira pessoa e deixando claro suas intenções e abordagens de ação, tenho certeza que sua interpretação será muito produtiva e de grande valor para o andamento do jogo. Você vai fazer o jogo andar, vai agregar qualidade à narrativa e não será impedido por sua timidez na hora de escolher o tipo de personagem que irá jogar.

O uso de dados e mecânicas para resolver conflitos sociais em jogos de RPG não é um problema, pode usar a vontade. Mas mesmo assim, nunca abra mão da construção da narrativa, pois pode perder grande parte do potencial lúdico e ilimitado da diversão disponível aos que jogam RPG.

É isso ai… o que dizem? Tem alguma dica para os tímidos? Vamos lá minha gente, abram o bico

Bons jogos para você!

 

PEP


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