…E quem disse isso foi ninguém mais, ninguém menos que Gary Gygax!
Hoje quero falar sobre o conceito dos Pontos de Vida em D&D, trazendo a palavra do criador do D&D e o que ele idealizou para este elemento tão comum nos RPGs e que acabou sendo apropriado pelos videogames (que possivelmente são responsáveis por essa confusão sobre o que representam os Pontos de Vida).
Muitas pessoas acabam tendo a visão de que cada acerto e rolagem de dano é uma espadada ou uma flechada que acertou o personagem mas, pelo menos na visão original do D&D, não era bem assim.
O próprio Gary Gygax explicou em dois textos, de maneira bem clara, a sua visão do que o conceito abstrato de Hit Points (os nossos Pontos de Vida) significa. Vamos dar uma olhada nesses dois textos?
1 – AD&D 1e Dungeon Master Guide (página 82):
Numa tradução livre:
“Não é razoável supor que, à medida que um personagem ganha níveis de habilidade em sua classe, ocorra um ganho correspondente na capacidade real de sofrer dano físico. É absurdo afirmar tal suposição, pois se formos assumir que um homem é morto por um golpe de espada que causa 4 pontos de dano, devemos assumir que um herói poderia, em média, resistir a cinco dessas estocadas antes de ser morto! Por que então o aumento nos pontos de vida? Porque isso reflete tanto a habilidade física real do personagem em resistir a danos – como é indicado pelo bônus de constituição – quanto um aumento proporcional em áreas como habilidade em combate e situações de vida ou morte equivalentes, o “sexto sentido” que adverte o indivíduo de situações que de outra forma não seriam previsíveis, pura sorte e as provisões fantásticas de proteções mágicas e/ou proteção divina. Portanto, a constituição afeta tanto a habilidade real de suportar punição física (compleição física) quanto as áreas imensuráveis que envolvem o sexto sentido e sorte (aptidão).”
2 – Dragon Magazine #24 – Abril, 1979 (página 18):
Numa tradução livre:
“Esse sistema de combate corpo-a-corpo também se baseia no número de pontos de vida designados para os personagens. Como eu já apontei repetidamente, se um rinoceronte pode receber um dano máximo total equivalente a oito ou nove D8’s, um máximo de 64 ou 72 pontos de dano para morrer, é positivamente absurdo assumir que um(a) guerreiro(a) de 8º nível com rolagens medianas nos seus Dados de Vida e um 18 em Constituição, portanto com uma média de 76 pontos de vida, possa suportar mais punição física que um rinoceronte antes de ser morto. Pontos de Vida são uma combinação entre a constituição física real, habilidade em evitar o recebimento de dano físico real, sorte e/ou fatores mágicos e divinos. Dez pontos de dano causados em um rinoceronte indicam uma ferida considerável, enquanto que o mesmo dano sustentado pelo(a) guerreiro(a) de 8º nível indica quase um erro, uma pequena ferida, um pouco de sorte que foi gasta, um pouco de fadiga se acumulando contra sua habilidade em evitar cortes ou estocadas fatais. Então mesmo quando um golpe acerta em um combate corpo-a-corpo, é mais comum do que não, se tratar apenas de um acerto de leve, um arranhão, uma ferida de leve que poderia ter sido fatal (ou quase) para um mero mortal. Em quantidade suficiente essas feridas vão acumular no personagem, entretanto, vigor e sorte afinal vão acabar e um ataque finalmente vai encontrar seu alvo em cheio…”
Gygax deixa claro que um acerto não significa que um braço foi quase decepado ou que o tórax do oponente foi trespassado. Os Pontos de Vida são uma abstração, representam ferimentos, mas também representam uma torção, um esforço, sua sorte entre outras coisas mais abstratas.
Dentro desse princípio (e olha que eu tô fazendo um grande trabalho de advogado do diabo aqui), coisas como healing surge ou second wind de D&D 4e podem até fazer sentido. Ou mesmo permitir que seus jogadores recuperem mais do que 1 PV por descansar durante a noite. Isso não significa necessariamente que o braço do guerreiro se regenerou milagrosamente, mas sim que parte do cansaço passou ou que os deuses da sorte sorriram para ele durante o combate ou mesmo que ele está mais focado no momento.
Você pode usar isso de mil formas diferentes no seu jogo, mas o importante é frisar que no contexto do D&D, por princípio de design, um acerto em combate não significa necessariamente um ferimento. A partir dessa premissa, fica a critério de cada mestre como inserir e interpretar o conceito da melhor maneira em suas mesas.
E na sua mesa como é enxergado o conceito dos pontos de vida? Barra de vida? Abstração? Dividem parte em físico real e outra em abstração como em Tagmar? Deixe a sua opinião nos comentários!!!
25/01/2019 at 2:18 pm
Bem lembrado.
25/01/2019 at 2:30 pm
O complicado pras pessoas entenderem isso, além do fato dos PVs receberem o bônus da Constituição (e não da Destreza também se, por exemplo, também representarem a capacidade de evitar ataques) é que há outros elementos mecânicos que ocupam esse papéis dos PVs que iriam além da capacidade de suportar ferimentos (como as regras de fadiga, manobras de esquiva, a própria Classe de Armadura, etc.). Em sistemas em geral mais abstratos, aí sim algo como PVs podem representar tudo isso de forma mais clara, porque não haveria outros elementos mecânicos conceitualmente redundantes. É claro, contribui também para a confusão uma visão de quem cresceu com videogames.
25/01/2019 at 5:41 pm
Poxa curti bastante a matéria se poderia ter adicionados exemplos de como corrigir e narrar isso em nossos jogos. Isso nós ajudaria bastante a consertar esse erro de interpretação… Levando assim o jogo a um outro nível de pensamento. ( More eu mesmo não saberia como mudar isso por isso ficaria feliz com a ajuda.
26/01/2019 at 9:57 am
O cara sai correndo enquanto uma saraivada de flechas vem sobre ele….. os danos podem significar apenas q ele ta se cansando enquanto desvia delas, saltando buracos, rolando sob objetos e se ralando todo… dai ele morre….vc poderia dizer q apenas uma flecha, la do inicio, foi que acertou e o fez morrer de sangramento rsrsrsrs
26/01/2019 at 9:59 am
Outro exemplo…. um duelo de espadas, vc poderia dizer que apenas o golpe final foi realmente o q acertou, e assim fica igual nos filmes…. os danos no meio do caminho apenas rasgam roupas, nada alem de ir minando o espirito de luta do espadachim.
27/01/2019 at 1:15 am
Opa, Sílvio!
O Pep deu umas sugestões boas aí, e no próprio texto tem algumas sugestões também (feridas, arranhões, torções, cansaço…). Mas eu achei a sua ideia de mais exemplos bem interessante, e talvez valha sim um post em separado só pra discutirmos como melhor interpretar os resultados dos dados durante um combate.
Valeu!
25/01/2019 at 6:25 pm
Mas se formos interpretar da forma que o Gygax propunha, os pontos de vida talvez não sejam tão diferentes da barra de vida em um videogame.
Claro que não são exatamente a mesma coisa; afinal, quando um golpe acerta no videogame, ele acerta. Mas quantas vezes a gente não vê em jogos de luta um personagem tomar um megahadouken na cara e continuar lutando normalmente, depois tomar um soco na canela e morrer? Dá para interpretar que aquele megahadouken diminuiu a concentração e fôlego do lutador e que ele, se não fosse um personagem excepcional, teria morrido; mas agora ele está vulnerável e cansado e a tíbia quebrada é que o obriga a abandonar a luta.
26/01/2019 at 9:56 am
Fato é brandão, que no video game vc so reduz sua barrinha de vida quando é acertado pelo inimigo de fato. No D&D eu poderia narrar que vc morreu sem ser tocado, so de exaustão, de tanto desviar das flechas rs….. a questão aqui é que nessa abstração do Gygax quando vc perde PV não siginifica sequer q vc foi tocado…….
27/01/2019 at 12:51 am
Justo, não é exatamente a mesma coisa; a barra de vida no videogame não deixa espaço para interpretações narrativas como os pontos de vida deixam.
Mas quis dizer que a barra de vida e os PVs são semelhantes por representarem não só a resistência do corpo, mas também incluir uma “energia heroica”, para usar um termo do Tagmar, que os personagens têm.
Agora, queria muito ver a cara do jogador na hora em que você dissesse que o personagem dele morreu de exaustão depois de desviar de dezenas de flechas.
27/01/2019 at 1:07 am
Tudo depende da situação.
Fidípides ainda é celebrado 2509 anos depois de sua morte, por ter corrido os 42 Km entre Maratona e Atenas.
Ele literalmente morreu de cansaço, somente para avisar aos atenienses que Xerxes havia sido derrotado e que a cidade deveria se proteger de uma possível investida persa durante a fuga da batalha.
E aqui estamos nós, 2509 anos depois correndo maratonas de 42 Km em homenagem a um cara que morreu de exaustão, numa situação que é considerada pelos historiadores como o nascimento do que se chama hoje de ocidente.
26/01/2019 at 10:05 am
Eu entendo a abstração, mas confesso que ela me parece incoerente….. vamos aos pontos q eu julgo meio inconsistentes:
1) Se o PV é uma abstração, não deveria se regenerar mais rápido? no D&D 5 vc cura tudo numa noite de sono, nos antigos era 1pv por dia, o q da a entender q eh apenas vitalidade.
2) Golpes q injetam veneno na corrente sanguínea, como ferrões de escorpião, nao podemos dizer que eles apenas desviaram, pois o efeito do veneno é aplicado. Teriamos golpes que precisam tocar e ferir na pele mesmo
3) Não temos nenhuma menção de efeitos que não sejam ataques reduzindo os PV. Tipo, dano psicologico, insanidade, sustos, moral baixa, tudo isso poderia ser refletido nos PV segundo a abstração, mas no final temos so porrada.
Me parece que ele fez a premissa e definiu o conceito e na hora de aplicar nao conseguiu…. deveriamos ter bonus de outros atributos alem de Constituição no PV e no final, me parece que os D&D mais novos conseguem tratar melhor essa abstração, pois temos os pontos de vida temporarios, os healing surges, os descansos curtos apos batalhas e os prolongados q curam tudo.
Otimo post…. debatamos!
26/01/2019 at 3:22 pm
Otimo
26/01/2019 at 3:23 pm
Otimo texto parabéns
26/01/2019 at 4:12 pm
Já conduzi combates em que acertos só causavam mais cansaço ao oponente. Pouco após a luta, a recuperação ocorria sem necessidade de um descanso prolongado. É importante que o mestre interprete cada situação do modo mais plausível, e ignore aquilo que não faca sentido em determinada situação. Desenvolver esse bom senso é necessário pra avaliar as circunstâncias da aventura de um modo geral.
29/01/2019 at 6:16 pm
Muito bom o texto, e eu acho que nesse conceito do Gygax acho que Tagmar faz melhor nesse conceito, separando o PV em duas energias , a heróica (EH) e a física ( EF). Os golpes que causam cansaço tiram o seu heroísmo , e quando este acaba você começa sofrar golpes no corpo , que demoram bem mais para serem curados.
17/02/2019 at 3:11 pm
Show! vou mandar pro meu mestre.
01/02/2020 at 12:32 pm
Não gosto dessa interpretação, até porque na hora da mesa toda vez que narram um acerto narram como se ele tivesse… Acertado.
“Ah, mas é só narrar como se o golpe tivesse errado por pouco…”
Eu já tentei e tive péssimas reações. Desde jogadores não contando o dano – “Ué, mas você disse que ele errou!” – ao combate simplesmente não ficando tão visceral e engajante – “Putz, ninguém acerta nada nessa bos#@!”.
Prefiro sistemas mais mortais, que deixam os players com menos hitpoints. Onde eles tem que se apoiar em armaduras que reduzem parte do dano ou habilidades que lhes permitem esquivar com mais frequência.
01/02/2020 at 2:08 pm
Opa, Luiz!
Então, mas também é um problema explicar como alguém que recebeu 6 espadadas certeiras continua lutando, e pela minha experiência os jogadores abstraem isso numa boa. Acho que é uma questão de sentar e conversar com o grupo, pra que se entenda o sentido original dos pontos de vida.
Existem alternativas, por exemplo, você pode dizer que a espadada acertou em cheio no peito da pessoa, e que ela não foi cortada em dois porque a armadura segurou. Mas a pancada ainda assim causou algum dano de contusão.
Grande abraço!
02/02/2020 at 7:44 am
Gostava da energia heroica do tagmar. Em D&D poderia ser algo como dano em pv e constituicao. Os pv seriam um folego q vc recupera rapidamente, tipo numa noite de sono. Ja a constituicao vc recuperaria 1 por dia se cuidando.
como daria dano na constituição? Bom, simplesmente criaria um tipo de dano chamado “letal” ou algo assim. Esse dano seria causado no atributo e ajudaria a reduzir pilhas e pilhas de dados de dano, afinal 1d6+4 na constituicao ja mata muita gente!!!!
Enfim, otimo post!