Uma análise sobre o presente e o passado do mercado de RPG no Brasil.

Por esses dias aconteceu uma discussão em uma página de uma antiga editora nacional de RPG, sobre o que (dentro dessa discussão) ficou conhecida como “A Era dos Três Grandes” (a saber: GURPS, a linha Storyteller da White Wolf e D&D).

Alguns dos argumentos usados eram de que esses sistemas tinham dezenas de publicações (o que no caso do Storyteller é verdade), e que quando uma pessoa entrava em uma livraria tipo megastore (e aqui eu tenho que fazer uma ressalva, essa podia até ser a realidade no Rio de Janeiro, São Paulo e talvez Belo Horizonte, mas certamente não era a realidade do Brasil) encontrava 20-30 livros de RPG pra escolher nas estantes.

O consenso entre as pessoas que concordam com esse pensamento é que essa foi a fase de ouro do RPG no Brasil…

Acho que a essa altura todos que acompanham os grupos de RPG nas redes sociais já viram nos últimos anos algum tipo de discussão sobre como o RPG vai morrer, ou sobre como antigamente o mercado do hobby era muito melhor.

Recordar é viver…

E aí eu me pego pensando, tentando relembrar como era o mercado nessa época, de meados dos anos 1990 até o início dos anos 2000. E minhas lembranças não poderiam ser mais distintas. Eu lembro que o acesso aos livros era bastante restrito, mesmo em megastores. Lembro que eles eram caros e as opções (exceto para os jogadores de Storyteller) eram minguadas, pra não dizer inexistentes. Publicava-se um módulo básico, alguns poucos suplementos e só.

Então, como conciliar essas visões tão diferentes da mesma época? É impossível que as duas lembranças estejam corretas, já que basicamente uma invalida a outra. Será que as pessoas que chamam “A Era dos Três Grandes” de idade de ouro do RPG estariam projetando a nostalgia e a lembrança dos bons tempos em que nossa maior preocupação era chegar em casa da escola pra poder jogar RPG com os amigos, mesmo sendo dia de semana? Ou será que eu é que não tive acesso aos bons lançamentos de RPG da época?

Em todo caso, não adiantaria partir de uma dessas duas premissas anedóticas, já que elas por si só não provariam nada de maneira não-subjetiva, certo? Então, bola pra frente e deixa isso pra lá, cada um segue com a sua opinião…

Mas eis que meio que quase sem querer, arrumando meus livros de RPG esses dias, eu encontro essa belezinha aqui:

Dragão Brasil Nº63 (clique para ver maior)

 

Essa é a Dragão Brasil Nº63 de julho de 2000. Esse encontro não poderia vir num momento mais propício. Eu não sei se vocês se lembram, mas era costume vir na quarta capa (contracapa) da revista uma propaganda da Forbidden Planet, com os preços de todo o material de RPG da loja (que era basicamente tudo o que havia sido lançado no Brasil, mais algumas coisas importadas). Vejam só:

 

Contracapa da Dragão Brasil Nº63 (clique para ver maior)

Reviravoltas do passado

De cara, a primeira surpresa: tudo o que havia de RPG no Brasil cabia em pouco mais de meia folha A5 (sim, numa letra bem pequena, mas dá um desconto porque também existiam dezenas de imagens ocupando espaço).

Eu comecei a fazer um levantamento pra comparar os produtos de GURPS anunciados pela Forbidden Planet (19 livros no total) com o que a Retropunk tem disponível na loja dela hoje de Savage Worlds para venda. Achei justo comparar os dois sistemas, já que são genéricos. Eu parei de contar o número de produtos de Savage World quando cheguei a 35 (entre livros e pdfs, não repetidos). Fui fazer a mesma coisa com a linha de AD&D (10 produtos entre livros e miniaturas de papel) e comparar os produtos disponíveis na loja da Redbox para o Old Dragon. Encontrei 12 produtos na Red Box, isso sem contar os livros lançados por terceiros para o sistema, que não estão a venda na loja.

O Storyteller é um pouco mais complicado, porque não existe nada que diretamente, hoje, faça competição com o sistema. São 30 livros anunciados na Forbidden Planet. Então por essa pequena amostragem é até possível dizer que sim, os jogadores de Storyteller viveram uma época boa, mas não se justifica falar em uma “Era de Ouro do RPG” ou “A Era dos Três Grandes” (no máximo, “A Era do Storyteller”).

RPG tá mais caro hoje?

Mas o mais interessante nessa imagem não é nem a listagem em si, pelo menos pra mim, mas sim os preços. Porque eu me lembro que os livros de RPG não eram baratos. Quer dizer, talvez fossem baratos, mas minha mesada era pequena. Como tirar então essa dúvida sem centenas de cálculos de inflação acumulada, percepção do valor do dinheiro e outras coisas subjetivas? Normalmente, quando eu discuto valores e poder de compra de 1994 (ano em que começou o Plano Real) pra cá, eu costumo utilizar o valor do salário mínimo como parâmetro (afinal, reza a lenda, é quanto uma pessoa precisa pra sustentar a família durante o período de um mês, certo?). É o meu Índice Big Mac para assunto brasileiros pós-Real.

Olhando aqui nesse site conseguimos ver um histórico do salário mínimo, que na época do lançamento da Dragão Brasil Nº63 (jul/2000) era R$151,00. O salário mínimo hoje é R$954,00.

Tentando ser o mais objetivo possível, vamos comparar o valor do kit básico de AD&D em 2000 com o valor do kit básico de D&D em 2018 em relação ao valor do salário mínimo.

Em 2000, existia um kit da Forbidden Planet com o Livro do Jogador e o Livro do Mestre por R$89 (aparentemente o Livro dos Monstros estava em falta, porque o valor dele não está disponível na revista, apenas aparece um ‘sob consulta’ no campo). Isso equivalia a 58,94% de um salário mínimo da época pelos DOIS livros. No momento em que escrevo esse post, no site brasileiro da Amazon o Livro do Jogador, Livro do Mestre e o Livro dos Monstros, em inglês, estão saindo por R$364,87. Isso é o equivalente a 38,24% de um salário mínimo atual pelos TRÊS livros. E ainda é possível hoje adquirir esses três livros com tradução para português feita por fãs, mais ou menos pelo mesmo valor.

O GURPS 2ª edição, na Forbidden Planet, custava R$34,80. Isso equivalia a 23,04% do salário mínimo da época. Os dois módulos básicos de GURPS 4ª edição podem ser comprados, na data deste post, no Submarino por R$154,89. Isso equivale a 16,23% do salário mínimo atual. Por dois livros.

Preços na gringa

Claro, você sempre pode alegar que a comparação dos livros de D&D não é justa, porque estou comparando um livro traduzido com o original em inglês e que a tradução de fãs, como foi feita pelos próprios jogadores, não tem impacto no preço final do livro traduzido feito em gráfica. Esse é um bom argumento. Vamos verificar o preço dos livros de RPG lançados no país recentemente e comparar com os livros originais em inglês pra verificar se o argumento se sustenta? Para fins da nossa comparação, vamos levar em conta um dólar a R$4,00 (apesar de na cotação dessa semana o valor estar variando entre R$4,10 e R$4,20).

Livro Editora Nacional Amazon.com
Savage Worlds – Ficção Científica R$ 50,00 U$19,99 (R$79,96)
Savage Worlds – Superpoderes R$ 50,00 U$17,99 (R$71,96)
Interface Zero 2.0 R$ 150,00 U$55,20 (R$220,80)
Numenera R$ 159,90 U$43,82 (R$175,28)
7º Mar R$ 169,90 U$46,65 (R$186,60)
13ª Era R$ 139,90 U$44,95 (R$179,80)
ICONS R$ 89,90 U$29,67 (R$118,68)
Star Wars RPG – Fronteiras do Império R$ 199,90 U$55,92 (R$223,68)
Dragon Age RPG R$ 159,90 U$42,27 (R$169,08)
Reinos de Ferro R$ 119,90 U$59,00 (R$236,00)

 

Calma aê rapaziada!

Calma, calma…antes de mais nada, algumas considerações importantes: Sim, eu sei que o dólar está bem caro e isso influencia no valor final do produto importado. Mas para fins de facilitar a comparação, eu também ignorei o preço do frete em dólar (que faz subir consideravelmente o preço do livro importado) e não levei em conta o preço de capa dos livros, e sim por quanto ele está sendo vendido nesse momento no site da Amazon (que todos nós sabemos, normalmente tem descontos bastante generosos).

Então eu particularmente considero que a comparação ainda é justa, mesmo com a alta do dólar. Outro ponto relevante: muitos dos RPGs nacionais estão ausentes dessa listagem (como o DCC ou o módulo básico de Savage Worlds) porque estão esgotados ou não tem uma versão que possa ser comparada diretamente (por exemplo, Guerra dos Tronos que em inglês tem outro tipo de papel e é colorido ou o Savage Worlds que só existe disponível na versão ‘Explorer’s Edition’ na Amazon).

Acho que por essa listagem (que nem de longe é exaustiva, mas serve pra ilustrar bem o ponto) é possível perceber que apesar de certamente o custo de tradução ter influência no preço dos RPGs traduzidos, essa influência não tem um impacto tão grande a ponto de aumentar consideravelmente o preço da versão nacional em relação ao livro original, necessariamente. Na verdade nossos livros de RPG estão com preços bastante competitivos quando comparados aos livros originais.

A 4ª edição de Legend of the Five Rings (fora de linha nos EUA) pode sair por um preço bem salgado no marketplace da Amazon.com

Conclusão

Levando em conta os critérios objetivos de disponibilidade (excetuando o Storyteller) e preço, fica bastante claro que não, antigamente o RPG nacional não estava mais bem servido. E que não, “A Era dos Três Grandes” não foi a “Era de Ouro” do RPG nacional (novamente, no máximo do Storyteller), objetivamente falando. E que o RPG nunca esteve tão vivo no Brasil quanto nos dias de hoje, onde temos diversas editoras não só trazendo produtos novos pra cá, como lançando projetos originais e RPGs que sequer estão disponíveis em língua inglesa. Pessoal, nós temos até autores independentes lançando RPG, como nunca tivemos na “Era de Ouro”. Alguns desses autores brasileiros inclusive estão lançando seus RPGs em outras línguas também (quando poderíamos ter imaginado isso, que um RPG brasileiro e independente faria sucesso pelo mundo?).

Não, amigas e amigos o RPG não vai morrer no Brasil e a “Era de Ouro” não foi há 20-25 anos atrás. A Era de Ouro do RPG no Brasil está acontecendo agora, bem na sua frente. Aproveita!


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