Na coluna Fábrica de Monstros eu apresento monstros completamente novos que crio através de um método bem simples e rápido. Este método por si só é suficiente para criar coisas bem legais e diferentes, mas hoje eu quero falar mais duas coisas sobre monstros, que podem tornar a experiência dos jogadores mais imersiva.
A forma como os monstros são apresentados e
a singularidade deles no cenário de campanha.
Monstros precisam causar medo
Por que será que mesmo os Orcs sendo verdes, fortes, musculosos, grandes, intimidadores e violentos, não causam medo nos jogadores? Esta mesma descrição em uma aventura de supers faria os jogadores correrem com medo do Hulk, mas em mesas de fantasia medieval o que acontece é que ouvimos brados de alegria: “Oba! Vamos matar orcs!”.
Isso pode acontecer devido ao fato dos jogadores já conhecerem a ficha dos orcs ou por terem personagens muito poderosos, mas a minha aposta maior é que, o mestre entregou de mão beijada a identidade dos monstros e isso estragou todo o clima de mistério e apreensão pré-encontro. O friozinho na barriga deu lugar a um alívio brochante.
Lembre-se que monstros precisam causar medo. Por isso são chamados de monstros! O medo vai ser o produto da leitura que os jogadores farão das descrições que o mestre fizer durante o jogo. Sendo assim, deixo aqui uma afirmação velha, mas sempre verdadeira, sobre o ofício dos mestres de RPG:
O mestre é, de modo bem simples, os olhos e os ouvidos dos jogadores
Esta afirmação vem do maravilhoso livro Dungeoneer, (Resenha do sistema Advanced Fighting Fantasy,) que desde os anos 80 nos alerta para o fato de que o mestre deve ser os olhos e ouvidos dos jogadores, mas não o seu cérebro.
Creia, apenas uma palavra como Goblinóide na sua narração já pode estragar tudo. Não fale as conclusões, mas as primeiras impressões obtidas pelos personagens. Deixe claro toda a nojeira, brutalidade, fedor e comportamento bizarro do monstro. Use sua criatividade aqui para ajudar os jogadores a tirarem suas próprias conclusões, de preferência meio erradas e com muita insegurança!
As conclusões devem ser formuladas pelos jogadores com base nas informações dadas pelo mestre, logo o poder de criar uma atmosfera tensa e dramática está nas mãos do mestre.
Monstros não usam cartão de visitas
Não informe nada que os personagens não tenham como saber! Limite-se a dizer o que seus olhos e ouvidos percebem e mais nada. Isso vai proporcionar o desconforto, medo, angústia e incerteza sobre o futuro dos personagens dos jogadores.
Veja bem, até aqui eu falo de causar insegurança nos jogadores e não em seus personagens. Preciso deixar isso bem claro, pois um bom jogador poderia até interpretar um personagem com medo, mas não seria a mesma coisa se o jogador realmente estivesse aflito. Não tem nada mais doido do que um paladino imune a medo sendo interpretado por um jogador que está molhando as calças de medo.
Claro que isso vai depender da forma como o mestre apresenta os monstros aos jogadores e aqui vai uma ótima dica:
Evite chamá-los por seus nomes conhecidos, preferindo sempre usar
termos vagos e descrevê-los como são vistos e percebidos
Esta citação vem do pequenino mas poderoso Espadas Afiadas & Feitiços Sinistros (outra resenha aqui), sendo basicamente um alerta para os mestres. Digam os nomes dos monstros, mostrem uma arte detalhada, falem sobre suas fichas e você tirará toda a aura de mistério e suspense de seu jogo.
Embora possa ser detalhada, a descrição de um monstro deve ser ambígua e imprecisa. Isso gerará nos jogadores dúvidas sobre seus oponentes. Aquele vulto feminino com cabelo que se move não precisa ser uma medusa, pode ser um morto-vivo com vermes enormes na cabeça!
Os jogadores precisam aprender que seus sentidos podem lhes enganar e que isso se retrata no jogo através das descrições que geram mais dúvidas do que respostas! Assim eles mesmos vão fazer perguntas ao mestre por traços distintivos dos monstros e alguma pista sobre como derrotá-los ou identificá-los.
Uma imagem estraga mais que mil palavras
Entenda, eu adoro criar monstros a partir de imagens e recomendo que todos façam isso, pois as imagens são ótimas para estimular a criatividade. Por outro lado, eu recomendo que não as apresentem aos jogadores logo de cara. No geral, descrever a besta e depois mostrar a arte é legal para estimular a mente dos jogadores. Isso é ainda mais recomendável quando a arte vem do livro oficial, pois os jogadores podem reconhecer mais facilmente a criatura (e sua ficha). Então, mesmo os monstros oficiais do jogo você pode cogitar a possibilidade de apresentar com outras artes garimpadas da net.
Agora vale uma ressalva. Se a arte for de um monstro muito doido e diferentão, ai você mostra! Sim, pois talvez você nem consiga descrever ele direito. Como que eu iria descrever o monstro da imagem a seguir de forma clara aos jogadores? Bicho, na moral, tem certos monstros que é só tu mostrar a foto que a galera se borra na hora, mas nem todos os monstros que usamos saíram de mentes como a de H.P Lovecraft né!?
Lar, doce lar
A apresentação do monstro pode ser a última coisa que você narre aos jogadores. É um artifício bem interessante permitir que os personagens explorem o covil vazio do monstro antes de confrontá-lo. Isso pode gerar uma tensão interessante na mesa.
Os jogadores devem ficar ansiosos pelo momento onde você mostrará o inimigo. Por isso é bom evitar um combate a cada sala da dungeon. Crie rastros e indícios da presença da fera. Deixe os jogadores explorarem e investigarem o local, pois tudo isso contribuirá para o clímax do encontro derradeiro.
Capriche nos detalhes do covil e os impactos ambientais da presença do monstro naquele lugar do cenário. A nossa coluna Biologia Fantástica irá te ajudar nesse ponto, por isso não irei me aprofundar nisso, mas é bom ter em mente que um bom covil pode fazer toda a diferença na imersão dos jogadores.
Oi, eu sou O monstro
Já vimos que o ideal é descrever a aparência e agressividade dos monstros ao invés de dizer seus nomes e bônus de ataque. Isso já gera uma grande mudança na campanha, pois os jogadores realmente ficarão inseguros sobre quem estão enfrentando. Entretanto, com o andar da luta provavelmente eles irão deduzir que se trata do monstro X ou Y. Por isso eu queria abordar, por último, a questão da singularidade dos monstros no cenário de campanha.
Se o monstro for único na campanha,
os jogadores nunca conseguirão deduzir nada sobre ele.
É aqui que o mestre brilha! Pensa comigo, a maioria dos monstros que usamos em mesas de RPG são oriundos ou baseados em mitologias e folclores. Entretanto, não é comum que estes monstros sejam retratados como uma especie numerosa, mas apenas como poucos ou um único monstro. Não lembro de tribos de minotauros na mitologia grega, mas apenas de um num labirinto, que tinha nome e sobrenome.
É disso que eu falo! Tente criar monstros únicos. Eu fiz isso na minha campanha corrente de D&D e o resultado foi bem interessante.
Eu inseri uma gosma alienígena que tinha o poder de transformar seres vivos em monstros. Até então não haviam monstros no mundo, mas quando a gosma tocou uma família de leões deu origem a uma família de Mantícoras, que obviamente não eram iguais as do livro. Eram únicas, tinham nome próprio e eram temidas pelos povoados próximos. Viraram a “lenda urbana” das redondezas e quando o grupo foi encará-las se surpreenderam com seus poderes de combate e comportamento completamente diferentes.
No final, o meu ponto aqui é que quanto mais raro e singular for o monstro, mais sentimento de posse os jogadores terão sobre suas vitórias. É muito mais legal você ser o cara que degolou Cornícera a besta que assolava as terras do norte, do que apenas o carinha que debulha monstros whatever por ai. Eu não matei uma manticora eu matei A Manticora. Não existe outra e ninguém mais matará outra além de mim!
Eu sei que alguns monstros você vai querer usar em grandes grupos e até criar comunidades e reinos inteiros com eles, mas experimente pegar alguns e torná-los únicos. Crie uma história em torno deles, faça com que eles sejam como seus NPC’s que realmente influenciam o mundo. Tente criar um monstro pensando em mais do que oferecer desafio e XP aos seus jogadores.
Agora eu preciso ir lá, porque tem muita coisa pra faxinar nessa Guilda.
Deixe sua opinião, crítica ou relato sobre o tema ai nos comentários que depois da faxina eu leio.
PEP
18/09/2017 at 2:55 pm
Parabéns Pep! A ausência de imersão realmente é um problema que deve ser contornado com medidas como essa. ABS!
18/09/2017 at 6:07 pm
Pelo que eu pude entender da matéria você acha que os personagens dos jogadores são simplesmente burros a ponto de que eles não consigam reconhecer um goblinóide ou um Orc logo de cara.
Se você é daqueles mestres que quando seu jogador usa algum conhecimento que ele (como jogador) sabe já vai dizendo “Não, não, você não sabe disso”, saiba que isso é extremamente frustrante e inútil.
O personagem não nasce na primeira sessão da campanha, ele vive num mundo repleto de criaturas estranhas desde que ele se conhece por gente, escutando lendas passadas de boca em boca por anos até o início da aventura. Dizer que ele não sabe/conhece nada além do que foi passado pro jogador parece burrice pra mim.
Outra coisa, os jogadores não gostam de se sentir burros (mesmo que por muitas vezes eles sejam…). Não trate eles como se fossem burros, se existe alguma chance de eles souberem com o que eles estão lidando, dê essa chance pra eles. Eles podem te surpreender usando táticas ou fazendo coisas que eles não fariam se faltasse essa informação para eles.
Por último, também quero dizer que a grande maioria dos jogadores prefere interpretar um personagem valente e forte do que um medroso e fraco. Conheça os seus jogadores, se eles se acham valentes, não importa o quanto você tente enrolar na descrição pra tentar fazer o bicho horrendo ou assustador, eles só vão estar esperando pelo “Rolem iniciativa”.
18/09/2017 at 7:07 pm
Fala Fernando, obrigado pelo feed-back!
Bom, o post não fala sobre deixar os jogadores se sentindo burros ou acovardados, muito menos força-los a fugir de tudo, mas apenas de trazer incerteza e suspense ao jogo através da narrativa envolvendo os monstros utilizados.
A questão não é se os jogadores conseguem reconhecer um goblinóide ou um Orc logo de cara, mas sim se o mestre precisa dizer que é um orc ou goblinoide literalmente. Como um mestre da escola velha, eu to acostumado com os jogadores usando seus conhecimentos extra-jogo e é sobre isso que o post fala, em como dar a estes jogadores calejados aquela sensação de adrenalina e incertezas que eles tinham quando eram iniciantes.
Não falamos de personagens aqui, mas de jogadores, pois são estes que precisam se divertir!
18/09/2017 at 8:01 pm
Discordo bastante da sua opinião, Fernando. Entendo que se no contexto do mundo, do personagem e tudo mais ele souber o que é a criatura é normal que ele a conheça quase de imediato, em muitos sistemas existem perícias e classes praticamente baseadas nisso, afinal. Agora dizer que só porque uma pessoa convive em um mundo com LENDAS sobre isso que ele de fato conhecerá tudo e todos. Tem muita gente no Brasil que acha que o “boitata” é um boi, principalmente se for considerar a dica de criaturas únicas.
E quanto a coragem, etc. Em termos, não é porque ele gosta de interpretar alguém corajoso que deverá ser uma figura unidimensional sem qualquer outro sentimento. O medo pode ser a forma mais forte de futuramente demonstrar coragem ao superá-lo e vencer o desafio.
23/01/2018 at 4:09 pm
Perfeito Renato, penso da mesmo forma. Acrescento também que, dependendo da condição de visibilidade do encontro, uma criatura conhecida, como um Orc, pode ficar irreconhecível com, por exemplo, vestes pesadas de inverno, determinadas armaduras, no meio de uma tempestade de areia, camuflagem, etc.
19/09/2017 at 4:16 pm
As melhores campanhas que joguei até hoje foram aquelas em que a tensão constante de uma morte certa estava em cada esquina, em que monstros, por mais fracos que possam parecer, representavam um perigo real, em que um enxame de mosquitos podia ser algo letal, que armadilhas são mortais e coisas do tipo.
Esse tipo de abordagem que ele sugere para os monstros ajuda a trazer essa sensação para a campanha porque mesmo personagens fortes teriam sua adrenalina elevada ao encontrar um inimigo, mas isso muitas vezes não acontece porque o cérebro calmo do jogador está se projetando na personagem em uma situação que devia gerar tensão mas acaba não gerando.
19/09/2017 at 4:13 pm
Excelente artigo, excelente abordagem para campanhas voltadas para o terror.